Conto: Cativa - Lívia Stocco

 


Cativa - Lívia Stocco

Conto narrado no Creepy Metal Show #149 - 23/02/24

 

        O cheiro invadiu suas narinas antes que despertasse totalmente: urina, tinha se mijado toda. O vômito seco impregnava a gola de suas roupas, acrescentando um odor ácido ao ambiente e trazendo a náusea de volta, só não vomitou outra vez porque não tinha nada no estômago, recusara-se a comer qualquer coisa que o homem lhe desse. Mesclado a tudo isso, reconheceu o cheiro de sangue ressequido, provavelmente vindo do corte na cabeça. A dor nos pulsos e tornozelos recordou-lhe onde estava e o que estava acontecendo, e mesmo que não quisesse, abriu os olhos lentamente, sentindo o peso das pálpebras protestar para mantê-los fechados.  

         Precisava se manter lúcida, então forçou-se a voltar à consciência. A visão direita, lado onde tinha recebido a pancada, estava turva. As cintas que mantinham seus braços e pernas presos à cama estavam mais apertadas do que antes, quando ela conseguira livrar um braço. Testou puxar o braço esquerdo, mas a dor a fez recuar: o membro estava roxo e inchado, o mínimo movimento a fez perder o fôlego. Não teve mais sucesso com o braço direito, e quando tentou movê-lo um filete de sangue escapou por baixo da cinta e escorreu por seus dedos, sinal de que as bandagens que seu captor improvisou ali tinham se soltado. Testou as pernas: nada, não conseguia dobrar os joelhos nem minimamente, e, como o resto de seu corpo todo, as pernas tinham hematomas e feridas que fizeram-na gemer de dor.

         Olhou ao redor com urgência, precisava encontrar um meio de escapar. Sua missão dependia de manter a boca fechada, mas não sabia quanto tempo mais aguentaria aquilo. O quarto da casa do sítio afastado da civilização permanecia com a janela de madeira aberta, zombando dela, de sua incapacidade de se libertar e correr campo afora. Um inútil copo de plástico no criado-mudo ao lado, cheio d’água, fez sua boca rachada arder de sede, sem que pudesse alcançá-lo. A parede de tinta descascada em frente, cujo único adereço era um crucifixo pintado recentemente, não oferecia qualquer recurso que lhe desse uma esperança. 

     O teto, as paredes, o criado-mudo sem gaveta, a porta lascada entreaberta, o copo de plástico. Nada, nenhum objeto pontiagudo, nenhum utensílio esquecido, nenhuma ponta frouxa nas cintas de que pudesse se valer para sair dali. 

         Um tinido do lado de fora a fez paralisar com o olhar cravado na folha da porta. Ouviu vozes abafadas e masculinas: ele tinha trazido reforço. Apertou os dentes tão fortes uns contra os outros que sentiu uma fisgada dolorosa no fundo dos olhos: tinha que se preparar. Provavelmente, daquela vez, o homem traria um arsenal de tortura muito maior, ela tinha sido alertada de que, se descoberta, aquilo poderia acontecer. Mas não podia ceder. Tinha que provar seu valor. Não podia dar o nome que ele queria.

     Ela ia aguentar. Seu chefe a tinha enviado ali disfarçada e fora descoberta, agora estava à própria sorte, e sabia que não tinha chance de resgate. Seria testada, mas não ia decepcioná-lo. Ia aguentar. Tinha que aguentar.

                                                            ***

        O homem não imaginou que um dia seria capaz de tudo aquilo: bater na mulher que amava, amordaçá-la e prendê-la a uma cama daquela forma, e pior, mantê-la ali, submetendo-a a dias de cárcere e interrogatório na tentativa de extrair dela a única informação que poderia salvá-la. Um nome, era tudo o que ela precisava dar, e o que ela se recusava a fazer. Tentara várias abordagens menos agressivas naqueles três dias, relutara em admitir, mas a verdade é que ela estava muito bem preparada, e ele, que tinha sido enganado por semanas, não podia lidar com aquilo sozinho. Precisava admitir que sua Cecília não existia, e que sem ajuda especializada muito mais do que seu amor estaria sob perigo.

      — É ela, padre — o fazendeiro apontou a mulher, em estado deplorável, amarrada à cama. — Salve minha Cecília, traga ela de volta.

        O padre apertou a Bíblia rente ao corpo. A parte visível dos braços da mulher estava coberta de manchas roxas e verdes, marcas de um espancamento que seu amigo jurava não ter feito: golpes que ela aplicara a si mesma quando seu marido a confrontara com a verdade. O único golpe que ele admitia era o da cabeça, aplicado para apagá-la quando a mulher tentara matá-lo. As gengivas sangravam, os olhos saltados estavam amarelos, mas ela mantinha um sorriso feroz e o olhar cravado no padre, que agarrou-se a toda a fé que possuía para não debandar daquele quarto impregnado de sujeira e terror.

        — Há quanto tempo ela está assim?

      — Três dias, mas ela ficou estranha desde o acidente no poço d’água. Depois que a tirei de lá, nunca mais ela foi a mesma…

        A criatura presa à cama vociferou em resposta, numa voz gutural:

      — É porque ela morreu seu energúmeno! Ela não está aqui e não vai voltar 

     E eu tenho muito que fazer me solte já e prometo matar você antes de comer seus pedaços!

      O padre se remexeu: mais alguns instantes e perderia a coragem. Abriu a bolsa que trazia a tiracolo e passou uma garrafa para o fazendeiro.

     — Não vamos perder tempo. Ao meu sinal, atire a água benta em jatos sobre ela — disse, enquanto, trêmulo, localizava a página que ele precisava da Bíblia em latim. — Pater noster, qui es in caelis: sanctificetur Nomen Tuum: adveniat Regnum Tuum. Diga-me seu nome, demônio!

        — Para o Inferno com você, seu padre de merda! — respondeu a besta.

                                                            ***

     Ela ia aguentar. Seu chefe a tinha enviado ali para testá-la, e não ia decepcioná-lo. Ia aguentar. 

          Tinha que aguentar.

  

Link da narração do conto:
https://spotifyanchor-web.app.link/e/1Qj7fq6ZsHb 
Link do programa na íntegra:
https://www.mixcloud.com/radioputzgrila/creepy-metal-show-149-produção-e-apresentação-sérgio-pires/

 

 

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